O Fim das Disciplinas no Ensino Contemporâneo: Necessidade ou Aventura?

Neste Março de 2015, muitos jornais e sites do Brasil e do Mundo anunciaram com destaque que a Finlândia, país de destaque nos indicadores de educação, havia eliminado de vez as disciplinas tradicionais no currículo das escolas de Ensino Médio. Embora desmentido pelo próprio Ministério de Educação da Finlândia, o assunto gerou curiosidade sobre o tema.

Segundo o publicado[1], os Finlandeses passariam a adotar um sistema que integra o saber em temas e faz com que professores e alunos vivenciem ações pedagógicas mais próximas das necessidades da sociedade atual. Deu-se o exemplo de que adotando um tema de trabalho profissional como “cafeteria” os jovens se envolveriam em práticas de matemática financeira, línguas, contabilidade e comunicação.

Não se vê aqui nenhuma invenção ou novidade, já que há décadas, escolas do mundo todo trabalham a integração disciplinar (ou a Multidisciplinaridade) em trabalhos ou temas transversais que além de eliminar divisões disciplinares permitem o trabalho de jovens de diferentes idades nas atividades. A novidade reside talvez no fato de que não havia ainda registro de um sistema nacional que trabalhasse desta forma em toda escolarização (do Ensino infantil ao Ensino Médio) como pretenderiam os finlandeses.

A notícia foi motivo para que muitas pessoas no Brasil e no mundo (entre educadores, pais, alunos e leigos em geral) discutissem o tema e passassem a falar também de Interdisciplinaridade, Multidisciplinaridade e Transdisciplinaridade[2]. Mas afinal, será esta a saída para uma educação realmente revolucionária e contemporânea? Todos os países deverão ou poderão adotar este modelo? Que aspectos positivos há nesta nova estruturação escolar? Como os professores poderão se adaptar a um sistema como este?

Para começar, vale a pena deter o olhar sobre a Finlândia enquanto nação em todos seus aspectos. Dos 5,5 milhões de finlandeses, apenas 1,4 milhão tem menos de 17 anos, o que coloca no ensino básico e secundário apenas 950 mil jovens. A quase totalidade das escolas em todos os níveis (incluindo aqui as universidades) é pública. A profissão de professor é uma das mais respeitadas, exigindo intenso aprimoramento para o exercício da atividade em todos os níveis. A remuneração da categoria é considerada justa, fato que explica a inexistência de greves ou manifestações do tipo. Na Finlândia, o ensino é obrigatório apenas dos 7 aos 16 anos. Entra-se tarde na escola pois se acredita que a vivência familiar é fundamental até os 7 anos para consolidação, na infância, dos valores culturais e morais[3]. Nestes 9 anos de escolarização aprende-se praticamente o mesmo que nos 11 anos da escolarização brasileira[4]. Neste modelo finlandês cursa o ensino secundário apenas quem quer. Mas apenas 1% dos estudantes que concluem o ensino básico não continua os estudos. E mesmo assim o nível cultural-informacional destes jovens já os torna aptos a ingressar no mercado de trabalho, em atividades que não exigem o ensino universitário mas que precisam de um mínimo de conhecimento e aplicação.

Embora 75% da população finlandesa entre 25 e 64 anos tenha nível universitário (o que equivale a 3,5 milhões de pessoas) o mercado de trabalho do país não faz uso pleno do cabedal científico existente, ou seja, não é difícil encontrar pessoas com nível universitário exercendo atividades que em outros países são vistas como de menor gabarito social como atendentes de lojas, caixas de banco, operadores de limpeza urbana ou policiais. Vale lembrar que a diferença salarial e de status social destas atividades com as demais (médicos, engenheiros, professores, etc.) é mínima na Finlândia, o que não torna esta situação um problema, sendo tudo isto muito natural.

Talvez aqui resida a diferença do que ocorre nas escolas da Finlândia e que não pode ser seguido à risca em outros países sem que se atinja primeiramente um grau social de igualdade e desenvolvimento.

Quando falou-se como exemplo em trazer dinâmicas de trabalho do cotidiano para criar os temas geradores do saber no Ensino Médio vale lembrar que neste país o Ensino Médio (ou secundário) já tem um papel fundamental no preparo extra para o mercado de trabalho, tanto que após a educação básica, a educação secundária já se divide em vocacional (técnica, com enfoque no mercado de trabalho) e acadêmica (com preparo para a especialização em cursos universitários a seguir).

Falar em abordar temas disciplinares em vivências profissionais faz sentido levando-se em conta que os estudantes já têm uma base de saberes construídos na educação básica anterior. Será fácil e interessante mostrar como se faz um livro contábil a estudantes que já dominam as operações matemáticas básicas, ou falar de matemática financeira aplicada se os mesmos alunos já estudaram logaritmos e operações com calculadoras científicas. Falar em Comunicação voltada ao turismo também tem sentido num país que tem na atividade turística importante fonte de postos de serviços e que valoriza o aprendizado de línguas[5]. Assim sendo o tema transversal “cafeteria” é superpotente em recursos para uma ação Multidisciplinar e até mesmo para uma vivência Interdisciplinar.

Quando as notícias do fim da disciplinaridade chegaram aos jornais de todo o mundo e os exemplos acima foram citados, imaginei a mesma aula do grupo da “cafeteria” nas escolas públicas brasileiras atuais. Com certeza o enfoque seria bem diferente e talvez os resultados tomariam outros rumos.

No sistema atual brasileiro muitos professores percebem grande defasagem de “arcabouço[6]” entre os estudantes em todos os níveis. Não temos a educação infantil alicerçada nos valores passados pela família (fato que expõe os professores à atual situação de desvalorização moral, afetiva, social e econômica na estrutura); não temos o Ensino Fundamental valorizando a relação aluno-professor-família-sociedade; não temos um Ensino Médio compromissado com a cidadania e chega-se a uma Universidade que não forma profissionais de competência por acúmulo de deficiências.

O Ensino Médio, antes mesmo de dar conta de ser profissionalizante necessita, no Brasil, apurar saberes básicos. É notável a taxa de estudantes que chegam ao Ensino Médio em situação de analfabetismo funcional e que avançam ao Ensino Superior na mesma situação.

Este quadro explica parte da atual condição brasileira de ineficiência trabalhista em todos os setores e níveis. Dadas as diferenças de remuneração, prestígio e principalmente de formação, não há eficiência, não há produtividade e multiplica-se ainda mais a desigualdade social.

Acabar com as disciplinas é um sonho para muitos que almejam a valorização do homem global, capacitado plenamente a viver em sociedade, mas experiências como esta só são possíveis em casos específicos, como colocam os próprios professores finlandeses.

Não basta eliminar a História, a Geografia e a Matemática e substituir por salas com placas de “Estudos das Guerras Mundiais”, “Estudos sobre a União Europeia” e “A vida de Pitágoras”, pois dependendo da ação, tratar-se-ia de “mais do mesmo” sob nova roupagem, como já fizeram e ainda fazem algumas instituições. A novidade estaria na atitude dos envolvidos. Professores e alunos teriam que se envolver numa dinâmica que permitisse o diálogo, a descoberta, a pesquisa em novas ações.

Antes de se preocupar com o fim das disciplinas na Finlândia seria mais prudente, em algumas situações, esgotar a fórmula em uso há décadas para propor uma novidade pertinente a cada realidade e recuperar uma formação de cidadãos capacitados, que não passem vergonha atendendo telefones, abrindo portas, recolhendo lixo, clinicando, atendendo nos balcões de lojas, ensinando, dirigindo ônibus, administrando grandes empresas ou governando um país.

 

Por Manolo Perez Vilches

Mestre e Doutor em Educação pela PUCSP

 

 

[1] O jornal inglês “The Independent” publicou inicialmente a matéria, replicada em centenas de sites e também por outros jornais do mundo todo.

[2] Para melhor entender estes termos sugere-se o aprofundamento em Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa, de Ivani Arantes Fazenda, Papirus Editora.

[3] A estrutura familiar e social do país permite este modelo, com carga de trabalho semanal reduzida, flexibilidade de horários, menor remuneração, melhor aproveitamento do tempo e das atividades sociais. As crianças pequenas não ficam mais de 4 horas em creches caso seus pais ou familiares não possam ficar com elas. O convívio familiar é a base da escolarização segundo os educadores locais.

[4] Há poucos anos pesquisas evidenciaram que o nível cultural de um estudante de ensino secundário finlandês era equivalente ao nível cultural de um estudante brasileiro recém formado em direito.

[5] São pelo menos 4 línguas na escolarização básica: Finlandês e Sueco obrigatórios e duas opcionais, sendo que 95% escolhem Inglês e Russo.

[6] Entenda-se arcabouço no sentido amplo, incluindo informações da escolarização precedente, da vivência sociocultural da região, de exemplos de ações do cotidiano e das referências do próprio senso comum e da comunicação de massa.